quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Salgadeira, essa arca-frigorífica de classe A+...

Meus amigos,

Venho ao blog escrever sobre um assunto, ou melhor, sobre uma tradição que também estará em vias de extinção, mas durante muitos anos foi prática comum anual na nossa terra: o uso da salgadeira! Há umas semanas vi esta foto numa página do FaceBook e claro está que a minha cabeça desmoronou-se em lembranças!

Hoje em dia, existem arcas frigoríficas, mas antigamente quando se matava o porco em casa, parte da carne era guardada em salgadeiras, que mais não era do que uma arca de madeira que se enchia de sal! O sal fazia a conserva, assim como também se utilizava o toucinho derretido para se guardar febras e costelas durante algum tempo e o azeite era usado para conservar alguns enchidos depois de retirados do fumeiro! Um dia…apareceram os frigoríficos e arcas congeladoras!

Mas porque é que as salgadeiras tinham assim um papel tão importante? De entre todos os animais domésticos que lá em casa se criavam, havia um que entrava num ciclo anual: nascia (ou comprava-se), crescia, engordava e depois matava-se! Estou a falar do porco! Estes animais só se utilizavam para alimento, nada mais! Na cozinha do forno toda a minha vida (enquanto os meus avós foram vivos), conheci uma panela de ferro, de 3 pernas, à qual chamávamos a panela do porco. Era para ali que iam algumas águas de lavagem, restos de comida, batatas, maçãs, couves bichadas, cascas, etc… tudo servia para depois se levar ao curral do porco e deitar-lhe para a sua alimentação. Lembro-me do meu avô ir “deitar a lavagem” ao porco, e ao que tirava da panela de ferro, juntar sempre uma mão ou duas de farinha para dar mais consistência. Ele lá ia crescendo… fosse ele de boa boca e que não apanhasse nenhuma praga!

Chegado o mês de Dezembro, já se combinava o dia em que o animal seria sacrificado! Era um dia de festa! Uma festa íntima, família, uns amigos mais chegados… Lá se ia logo de manhã buscar carqueja (já explico porquê), preparava-se o banco, e começava a chegar o pessoal… Hora da sentença do bicho, tirava-se do curral, normalmente ia um a cada pata e o mestre, o meu tio Zé era o homem da faca. Lembro-me que ele preparava a faca que vinha sempre protegida numa capa de pele, afiando-a bem nos seus dois gumes.

Olha bem, porco agarrado e deitado de lado em cima do banco de modo a que a parte superior do peito ficasse à mostra e disponível! E assim se sangrava o bicho, e aproveitava-se o sangue para uma gamela de madeira quadrada que acho que ainda anda lá em casa. Esse sangue tanto servia para depois fazer as morcelas, como para fazer sangue cozido (isso mesmo, sangue cozido… bem espremido, com um pouco de alho e azeite e é um petisco do melhor)! Porco morto, sangrado, tapava-se o buraco da facada com um pouco de jornal ou até às vezes com um carolo do milho!

Agora era a hora de se utilizar a carqueja apanhada na manhã. O porco tinha de ser limpo dos pêlos e de toda a sujidade superficial da sua pele. Hoje, versão moderna, esta tarefa é normalmente feita com um maçarico, mas o tradicional é o tradicional… um homem que, com o auxilio de dois paus compridos passava pequenos molhos de mato a arder pela pele do porco… a seguir vinha o resto do pessoal munido de telhas meia-cana ou raspadores em metal, raspar a pele para tirar a sujidade e o pêlo queimado! Água, lavar, água quente para lavar as orelhas que eram logo abertas ao meio e a queixada…

Chegava a hora de o pendurar… tendões das patas traseiras à mostra e chambaril enfiado!

Abria-se o porco, tirava-se a tripalhada toda (que seguiam para a lavagem, mas esta parte conto em outra ocasião), pulmões, fígado, etc, etc… Lá diz o ditado antigo: “se queres ver o teu corpo, mata um porco”!

As primeiras assaduras começavam a sair e o porco ficava a “secar”, a escorrer umas 24 horas! Depois no outro dia, o animal era desmanchado, e a maior parte da carne começava-se a arrumar na salgadeira… Em camadas, ora de carne, ora de sal (daquele grosso!!). Os presuntos, lembro-me que eram esfregados com alho e também ficavam na salgadeira. Passados uns meses já estavam bons para se comerem.

Esta lengalenga toda para vos falar do papel importante da salgadeira que assim mantinha e conservava a carne durante o ano todo. Quando estava vazia, também era sinal que outro porco estava para ser morto.

Acredito que será uma das tarefas que nem todos gostam, especialmente quando o porco está para ser morto pois quase que toda a aldeia consegue ouvir os guinchos do animal, mas era assim que os nossos familiares antigos viviam no campo. A tradição, em algumas casas ainda se mantém… e muito bem!

Não sei se repararam mas, aproveitando o tema, fiz uma “chouriça” com o texto: comecei a falar da salgadeira e acabei nela! Há coisas fantásticas…!

Um grande abraço a todos,
JC

5 comentários:

Catela disse...

Simplesmente fantástico!

cristina duarte disse...

O texto é longo mas muito bem esplicado. Estás de parabens pelo texto e pelo tema.

Monika disse...

xiii. é verdade. eu lembro disso. mesmo com 26 anos...outros tempos :D

Anónimo disse...

Sim senhor é verdade, ainda hoje se faz em algumas casas, poucas é certo, mas faz.

Anónimo disse...

É verdade sim senhor. E nessa altura parecia que a carne de porco salgada não fazia tanto mal, bom também não havia a porcaria, desculpem o termo, das rações.